u m l u g a r
o n d e
p o u s a r Juliana Maia
lapa, Lapa. 27/9-18/10/24
A partir de sutis exercícios de imaginação, Um lugar onde pousar convida a uma revisitação crítica do espaço doméstico. Negligenciado pela arquitetura ao longo dos últimos cento e cinquenta anos da História, o filósofo italiano Emanuele Coccia, que em 2021 publicou o livro Filosofia da casa, defende que, entre outras coisas, “é no lar e por meio dele [...] que a desigualdade entre os sexos foi gerada, afirmada e justificada” (Coccia, 2021). É a partir desta reflexão, que o autor enfatiza que existe, nos nossos dias, uma urgência – não só política, mas moral – em revisitarmos as complexidades deste espaço. Nesta exposição Juliana Maia, que há mais de dez anos segue esta linha de investigação, parte de objetos tipicamente associados à casa, como almofadas, cortinas, bolsas e vasos – o que carrega, o que alivia, o que acolhe – procurando um engajamento com a memória e a História no feminino.
Podemo-nos aproximar à prática de Juliana ligando-a a uma linhagem de artistas (principalmente mulheres), que impulsionadas pela vontade por um futuro outro, debruçaram-se sobre a pergunta pelo que constitui um abrigo. Penso especialmente n’A casa é o corpo (1968) de Lygia Clark e num desenho do artista português Carlos Bunga, intitulado Minha Primeira Casa foi uma Mulher (1975). Nele, vemos uma mulher grávida, cuja cabeça é uma casa. A obra remete à vivência da mãe do artista, refugiada em Portugal no final da década de 1970 durante a guerra de independência de Angola, na altura grávida dele. Apesar do fato dela se encontrar deslocada, o seu ventre serviu de abrigo. Na obra de Juliana as referências ao ventre são múltiplas: tanto bolsas como almofadas remetem ao mesmo como lugar que carrega e acolhe. Além da série Sacolas (2022-2024), são exemplos o painel Todo dia uma insónia (2023) e a obra Canguru (2023). Ao refletir sobre esta procura profunda por um lugar, físico e emocional, de acolhimento e segurança penso também nas “ações na casa” de Brígida Baltar (Abrigo e Torre, ambas de 1996). Em Abrigo, a artista esculpiu sua própria silhueta em uma parede de sua casa e, ao entrar nesse casulo, tornou-se parte da sua própria casa. Já no caso de Torre, Baltar retirou tijolos da parede da sua casa para construir uma estrutura de confinamento e proteção ao redor do seu corpo.
Não será por acaso que Juliana é formada em Arquitetura, nem que no seu trabalho se encontrem múltiplas conexões entre o corpo e a casa, essa “bolsa maior”. Porém o interesse pela arquitetura pode não ter sido nunca o desejo da construção de uma materialidade como tal, mas o início dessa busca pelo que constitui, precisamente, um abrigo. Esta abordagem torna-se especialmente clara nos painéis respiro aliviada (2024) e todo dia uma insônia (2023). Nestas paisagens-corpo o cetim, um tecido leve e brilhante, é a base para intervenções sutis que falam de partes de experiências de um corpo-arquivo. Podemos olhar para estas paisagens como se de uma pintura se tratasse, remetendo-nos a lugares que alguma vez habitamos – geográficos ou emocionais. Mas podemos também reconhecer nelas partes de corpo – caixa torácica ou pulmões, barriga, ventre ou saco gestacional, espinha dorsal, pele, rugas e cicatrizes. É assim, que no cruzamento de técnicas de tecelagem, costura, bordado e crochê, as obras de Juliana, que ora se assemelham a pinturas, ora a esculturas, evidenciam a relação estreita que existe entre os espaços físicos e o nosso sentir, assim como a nossa necessidade de nos reconstruirmos em função deles.
Carregamos memórias nos nossos corpos, mas não é só nos nossos corpos que ela se emprenha. É na materialidade que nos rodeia, com a qual interagimos diariamente, que vamos deixando marcas. É através dos nossos gestos criativos, dos objetos que produzimos e os quais contam histórias sobre o nosso fazer e viver, que afinal deixamos rastros que contêm algo de nós. Os objetos se tornam fonte de informação e especulação sobre o nosso passado e futuro. Na arqueologia, são os objetos da vida cotidiana que nos permitem ter uma ideia sobre a nossa ancestralidade: possíveis formas de alimentação, a nossa relação com outros seres, formas de ataque e defesa, possíveis costumes, hábitos e rituais. A partir da interpretação dos rastos, tentamos nos aproximar do nosso passado.
Assim, os objetos e a sua materialidade se transformam em oráculo: através da especulação sobre o que foi, mudamos a nossa perceção acerca do que é e poderá vir a ser. Essa ficção de rastos, esse interesse por uma realidade que poderia ter sido outra, é caraterística da prática da Juliana. Exemplo são as obras da série Das casas em que passei e que nunca existiram (2019) e a aqui exposta Almofadinhas (2023), em que os alfinetes demarcam as efémeras deformações das almofadinhas após serem pressionadas com o dedo. aqui exposta Almofadinhas (2023), em que os alfinetes demarcam as efémeras deformações das almofadinhas após serem pressionadas com o dedo. Assim, no processo criativo de Juliana, o tecido é enxergado como um corpo vivo, capaz de absorver e carregar memórias (muitas delas perdidas ou apagadas ao longo da História) e que retomam, aqui, o seu protagonismo. Destacam-se duas séries de trabalhos recentemente completados e que são expostos pela primeira vez: Coisinhas (2024) e Sacolas (2024). Ambos seguem uma abordagem que poderíamos chamar de ficção arqueológica. Estes ensaios questionam a História que é tradicionalmente narrada no masculino, ao imaginar o que poderiam ser rastos associados à vivência das mulheres. As três Coisinhas, pequenas esculturas feitas com fio de algodão e fio de cobre, relembram vasos ou jarras, do tipo que normalmente encontramos em museus etnológicos, enquanto as Sacolas são feitas a partir de pedaços de tecido de bolsas que não foram acabadas. Todas elas coletadas numa fábrica e mantidas no estado em que chegaram às mãos da artista – algumas com manchas, outras com buracos, todas elas foram cuidadosamente bordadas com o objetivo de salientar as suas formas originais e remendadas para atender às marcas que os tecidos já carregavam. Esta série de sacolas homenageia um objeto cultural que, segundo Elizabeth Fisher pode ter sido, ao invés de ferramentas de caça, o primeiro dispositivo cultural (Fisher, 1975).
Através de um processo criativo em que a vivência interior da artista se encontra em diálogo constante com as estruturas sociais e a forma como estas se refletem no espaço, voltamos ao início e vemos uma Vista turva de dentro (2022) – um convite a olhar de novo.
Sofia Steinvorth
Referências
Coccia, Emanuele. 2021. Philosophy of the Home: Domestic Space and Happiness, London: Penguin Books.
Fisher, Elizabeth. 1980. Women’s Creation: Sexual Evolution and the Shaping of Society, New York: McGraw-Hill.